domingo, 20 de setembro de 2009

O SEGREDO DE UM CUSCUZ

Nem vale a pena discutir a triste adulteração do título na sua passagem para português - até porque nem é das mais falhadas e o filme recompensa grandemente o que se perdeu no traduzido titulado.

O Segredo de um Cuscuz é um filme belíssimo de Abdel Kechiche que conta com a presença de inúmeros actores amadores que se representam em perfeição - deixam-se estar, vão ficando, deixam-se filmar. É uma cumplicidade tremenda que se estabelece entre nós e esta família multiracial e problemática como todas - paralelamente ao correr do grande rio da história principal (a luta de Habib em montar um restaurante num barco, ajudado pela mulher que deixou e apoiado pela mulher com que está), outros pequenos afluentes existem, diversos apêndices núcleos familiares com a sua espantosa riqueza e realismo das personagens. Arrisco em chamar-lhes não de personagens ou actores vestindo um boneco, mas pessoas, gente verdadeira, real.

Este filme é absolutamente mágico - vai do luminoso ao escuro, do absoluto ao vazio - mexemo-nos na cadeira tanto impotentes como sorrindo, pontapeia-nos com o feio que existe na vida como também nos embala com o que de mais extraordinário pode ser contado. E é tudo filmado próximo, o realizador não nos dá tréguas, nem tréguas a estas pessoas que se deixaram filmar no seu quotidiano - este filme é um documentário de câmara solta na mão, gesticulando perante as faces, os trejeitos, os defeitos e as imperfeições de quem lhe surge pela frente.

O ternurento momento da refeição em família onde se partilha o cuscuz feito pela anciã é o tempero da vida. Já a catarse da Julia, mulher traída e só um destroço, que grita chora se contorce para a tela durante mais de uns longos 10 minutos obriga-nos a tapar a cara, a afastar o olhar, a pensar em sair dali, a evitá-la. É um desconforto atroz que sentimos no que será possivelmente um dos momentos mais - simultaneamente - duro e intenso do cinema. A dança do ventre empresta-nos a festa da alegria após a dura batalha para erguer o restaurante (através de inúmeras barreiras burocráticas e obstáculos raciais - falamos de um árabe em França) até ao trágico final.

O filme é longo, são 151 minutos de montanha russa sentimental, experimentamos e compartilhamos de tudo o que se passa em tempo real à nossa frente. É como se nos vissemos, é como se nos pintassem, nos documentassem. Este é um magnífico documentário da vida -´e é para mim o melhor filme do ano.

Visto no cinema King, LX - um belo par que se acompanhava.

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