terça-feira, 5 de novembro de 2013

ACONTECEU NO CINEMA, OU ERA UMA VEZ O SPAGHETTI WESTERN


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Uma apreciação sobre aquela que é encarada como a obra-prima Spaghetti Western de Sergio Leone, o Aconteceu no Oeste (C'era una Volta il West - 1968) abre todo um imaginário sobre esse sub-género muito característico. Longe de se resumir na obra de Leone (filmes que no entanto o representam orgulhosamente), foram realizados por produtoras europeias quase 600 (segundo algumas fontes, 558) Westerns sobretudo entre 1961 e 1973, após o que o género se foi diluindo lentamente.

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Chamados também de Italo-Westerns (ou Eurowesterns) são mais reconhecidos pela expressão de Spaghetti Westerns – designação que servia a todos os Westerns financiados e produzidos na Europa (na sua larga maioria em Itália) e que terá sido cunhada pelos críticos americanos para a ridicularizar. É irónico verificar que foi o eurowestern o responsável pelo revitalizar de um género que então rapidamente decaía em Hollywood.

A sede dos espectadores europeus por entretenimento que mostrasse o Old West americano levou a que naturalmente a indústria fílmica europeia abandonasse os já esgotados filmes sword and sandal (pepla films) que frutificaram nos anos 50 e inícios dos 60 e concentrassem a sua pequena máquina a produzir Westerns (o mundo do cinema é de paixões cíclicas e circulares). A primeira produção citada como Spaghetti Western foi o Tierra Brutal / Savage Guns (1961) produção conjunta espanhola e inglesa, realizada por Michael Carreras e que reunia muitas das características que viriam a ser representativas do género: filmes de muito baixo orçamento quanto comparados com os americanos, filmados no Sul de Espanha no deserto de Tabernas perto de Almería, com equipa técnica europeia e um punhado de actores americanos. Uns quantos foram filmados no sul de Itália mas seria em Espanha e também as produções italianas ou conjuntas italianas/ espanholas que seriam mais prolíficas (se bem que as produções alemãs tenham sido também em número considerável). É interessante reparar que muitos dos filmes (devido ao cenário desértico do set e aos figurantes espanhóis e italianos imediatamente disponíveis – e que podiam facilmente ser tomados por mexicanos) se passavam em situação de fronteira americana. 

De notar também que estes filmes eram filmados em silêncio, sendo depois adicionados em estúdio a banda sonora, os diálogos (a maior parte dos actores italianos eram curiosamente também dobrados para italiano) e o som ambiente (os característicos spaghetti sounds). Longe de ter lançado o género, foi com Sergio Leone que este atingiu as proporções que o elevariam a culto. Com Por Um Punhado de Dólares (Per un pugno di dollari – 1964), adaptado de Yojimbo de Kurosawa, Leone obteve excelentes resultados de bilheteira e opinião crítica favorável tanto na Europa como nos Estados Unidos, permitindo-lhe fazer uma primeira e uma segunda sequela que juntas formam a Trilogia dos Dólares ou Trilogia do Homem Sem Nome: Por Uns Dólares Mais (Per Qualche Dollaro in Più 1965) e O Bom, O Mau e o Vilão (Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo – 1966). Nesta trilogia introduziu a personagem do Homem Sem Nome, um misto de anti-herói e caçador de prémios, solitário, silencioso e a vezes justiceiro, interpretado por um jovem actor chamado Clint Eastwood, numa fórmula que seria repetida inúmeras vezes nos anos seguintes.

A ideia fundamental era sempre o entretenimento, mas com Leone densificaram-se as personagens e a estrutura do filme passou a conter questões políticas e sociais. É dado o crédito aos Spaghetti Western de terem desmistificado o Western clássico americano – que na origem era romântico, bucólico e de algum modo feliz – tornando-o negro, sombrio, decadente e sem esperança. Leone pretendeu fechar este seu ciclo de Westerns com o filme que é, reconhecidamente, a sua obra-prima (ainda que O Bom, O Mau e O Vilão seja mais conhecido), o Aconteceu no Oeste (C'era una volta il West – 1968) onde contava já com um budget comparável a Hollywood e onde ensaiou um toque de finados pelo género.

Acidentalmente ainda dirigiu mais dois Spaghetti Westerns, o Aguenta-te, Canalha (Giù la Testa – 1971) e o O Meu Nome é Ninguém (l mio nome è Nessuno -1973), este a meias com Tonino Valerii. Aconteceu no Oeste, Aguenta-te, Canalha e o Era Uma Vez na América (Once Upon a Time in America – 1984) viriam a ser reunidos numa trilogia dedicada à América.

Longe de se resumir ao Aconteceu no Oeste, os Spaghetti Western têm neste o seu maior monumento. Aqui, a longa colaboração de Leone com Ennio Morricone atingiu níveis de excelência que levou inclusivamente a que as cenas fossem coreografadas ao som da banda sonora. Sergio Leone tornou-se a epítome do género, sendo responsável pela sua explosão em qualidade e quantidade, levando até a uma reversão na aceitação por parte da crítica americana e tornando-se referência para muitos filmes posteriores saídos de Hollywood. Filmado como uma ópera Western e sendo de certa maneira uma evocação à disputa entre as 3 personagens de O Bom, O Mau e o Vilão, introduzindo o motivo da vigança (que faria escola), em Aconteceu no Oeste Leone revela toda a sua maturidade fílmica. Os longos silêncios e o ritmo pausado e introspectivo marcaria uma intenção de mostrar a decadência do Velho Oeste e ascendência do caminho de ferro sobre as padarias. Os close ups nas cenas de tiroteio e os longos silêncios intercalados por som ambiente dão ao filme um ritmo perfeito em que o mais marcante não é o que acontece, mas o que se adivinha como eminente.

Sergio Leone foi responsável pela construção parcial de 3 sets no Deserto de Tabernas, Almería que seriam utilizados frequentemente nas filmagens dos Spaghetti Westerns (Texas Hollywood, Mini Hollywood e Western Leone) – sendo que Aconteceu no Oeste seria um dos poucos a ser também filmado nos Estados Unidos, no Monument Valley, tão precioso a John Ford.

Os filmes de Leone fizeram escola em Hollywood e tornaram-se referência explícita para os filmes de Clint Eastwood: O Pistoleiro do Diabo (High Plains Drifter – 1973), O Rebelde do Kansas (The Outlaw Josey Wales – 1976), O Justiceiro Solitário (Pale Rider – 1985) e Imperdoável (Unforgiven – 1992), para Sam Raimi: Rápida e Mortal (The Quick and The Dead – 1995), para Tarantino (saga Kill Bill – 2003/04), para Robert Rodriguez: na Trilogia do El Mariachi (El Mariachi, Desperado e Once Upon a Time in Mexico – 1992, 1995 e 2003) e os Irmãos Coen no Este País Não é Para Velhos (No Country For Old Men – 2008).

Para um profundo mergulho dentro do género, espreitem o sítio : www.spaghetti-western.net

Rafael Vieira 2010, não publicado

Filmes comentados ::


Michael Carreras Tierra brutal / Savage guns (1961)


Sergio Leone

Por um punhado de dólares // Per un pugno di dollari (1964)
Por uns dólares mais // Per qualche dollaro in piú (1965)
O Bom, o Mau e o Vilão // Il buono, Il brutto, Ill cattivo (1966)
Aconteceu no Oeste // C'era una volta il West (1968)
Aguenta-te, Canalha // Giù la testa (1971)
O Meu Nome é Ninguém // Il mio nome è Nessuno (1973) (co-realizado com Tonino Valerii)
Era uma Vez na América // Once upon a time in America (1984)


Akira Kurosawa
Yojimbo, O Invencível // Yojimbo (1961)

Clint Eastwood

O Pistoleiro do Diabo // High plains drifter (1973)
O Rebelde do Kansas // The Outlaw Josey Wales (1976)
O Justiceiro Solitário // Pale Rider (1985)
Imperdoável // Unforgiven (1992)


Robert Rodriguez 

El Mariachi (1992)
Desperado (1995)
Once upon a time in Mexico (2003)


Ethan Coen
Este País Não é Para Velhos // No country for old men (2008) 

Tarantino Kill Bill I & II (2003/2004)
Sam Raimi Rápida e Mortal // The quick and the dead (1995)

Bibliografia ::


NUDGE, John. Spaghetti Westerns. 1998. in Imagesjournal.com.

Base de dados ::

1 | http://www.wildeast.net/spaghettiwestern.htm
2 | http://www.spaghetti-western.net

DUNE, A Saga do Deserto


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À grande maioria das pessoas, o fenómeno Dune resume-se ao filme Dune (1984) de David Lynch e aos subsequentes jogos Dune e Dune II: The Building of a Dynasty (da Cryo e da Westwood respectivamente, para a Virgin Interactive) e conhecerá talvez o livro de Frank Herbert. No entanto, a um aficcionado em potência e agora que foi anunciado o projecto da Paramount de um novo Dune para 2012 a ser realizado por Pierre Morel (Banlieue 13, Taken), interessará saber mais.

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No início havia um livro escrito por um aspirante a ecologista chamado Frank Herbert que lançou o universo Dune em seis livros e então descansou; desde o Dune de 1965 até Chapterhouse: Dune de 1985, passando pelos Dune Messiah (1969), Children of Dune (1976), God Emperor of Dune (1981) e Heretics of Dune (1984). Há ainda espaço para assinalar que a dupla Brian Herbert e Kevin J. Anderson editaram ainda uma quantas prequelas e sequelas baseados em trabalhos não terminados de Frank Herbert, expandindo a saga quase até a exaustão. O livro Dune é dos mais rentáveis de sempre dentro do género sci-fi e a saga Dune das fundamentais dentro desta literatura.

E depois dos livros há os filmes e as mini-séries (além dos inúmeros jogos) que deles brotaram: primeiro Duna (Dune – 1984) de David Lynch, depois a mini-série em 3 episódios Frank Herbert's Dune ou Dune (2000) de John Harrison e a fechar outra mini-série em 3 episódios, a Frank Herbert's Children of Dune ou Children of Dune (2003) de Greg Yaitanes.

O filme de Lynch assinala a estreia da história de Herbert no grande ecrã e marcou-a visualmente para a posteridade, ainda que contrariando os mais acérrimos defensores da obra de Herbert que a acusam de falta de fidelidade em relação ao livro. O que antes tinha sido imaginado e construído a partir do livro foi materializado neste filme como uma ópera rock sombria e negra – o que encontro posteriormente que me recordou o Dune de Lynch foram o Dark City de Alex Proyas (1998) e o La Cité des Enfants Perdus de Jeunet/ Caro (1995). Encontro algum paralelo no Blade Runner de Ridley Scott (1982) o que surge como curiosidade, dado o facto de o realizador inglês ter sido contactado para realizar a primeira adaptação de Dune.

A quem tenha lido o livro original e a que cause estranheza e até repelência o toque de Lynch e os desvios à obra, não pode deixar de concordar que foi essa mesma marca de Lynch que revolucionou e democratizou Dune (e apadrinhado por Herbert). A série Dune de 2000 é um fiel obediente ao clássico, assim como Children of Dune de 2003 (esta adaptando para tv os livros Dune Messiah e Children of Dune), mas se por um lado se mantêm fiéis em absoluto ao escrito, por outro falham retundamente em qualidade nas interpretações e na evocação capaz de um universo literário que pedia mais em muitos detalhes, seja guarda-roupa, imagética e outros – facto explicado talvez pelo orçamento controlado ou talvez ainda, arrisco, pela sombra e peso da obra de Lynch. Tudo somado proporciona que se espere com ansiedade a nova adaptação de Dune ao cinema, que tem saída prevista para 2012.

Se alguma decepção atinge o fã que conheceu este universo através do filme de Lynch e depois se apercebe conhecendo os livros de que a liberdade criativa nesse foi exageradamente além duma simples adaptação, existem diversas edições extended e um fanedit online mais obedientes à literatura. E são extended e não director's cut porque Lynch se demarcou do projecto – e até recusou uma sequela que estava prevista – precisamente pela erosão causada pelos fãs, o que levou a que surja creditado nessas revisões posteriores como Alan Smithee na realização e como Judas Booth no argumento (é notória a antipatia de David Lynch por estas tentativas de aproximação aos fãs por parte da produtora, sendo conhecido que – dizem as más línguas – que abandona as conferências de imprensa mal se refere este projecto).

Numa visão pessoal, considero o filme de Lynch brilhante e as adaptações para televisão menores – mesmo contando as alterações de fundo ao filme de 1984, como sejam o final diferente, a introdução dos weirding modules, a reinterpretação da weirding way e ainda a alteração substancial à densidade psicológica da personagem de Jessica. Por detrás deste filme há no entanto um dos filmes não concretizados mais interessantes de sempre e que terá sido abandonado pelos custos de produção envolvidos. Este não-filme era para ser realizado por Alejandro Jodorowsky (El Topo, Holy Mountain) e reuniu ainda os talentos durante a pré-produção de HR Giger (que desenhou as cadeiras Harkonnen e viria a desenhar Alien e Species), Dan O' Bannon (que depois escreveria Alien para Ridley Scott) e Moebius, num filme em que ainda foram seleccionados Orson Welles, David Carradine e Salvador Dali (este para interpretar o imperador Shaddam Corrino IV ). A BSO ficaria a cargo dos Pink Floyd. O projecto tornou-se incomportável e pouco depois os produtores contactaram Ridley Scott, que trabalharia ainda durante algum tempo no que seriam dois filmes, para logo então o abandonar por prever trabalhos gigantescos de pré-produção (e para realizar Blade Runner). É a partir deste momento que surge Lynch. 

As areias de Arrakis pareciam demasiado difíceis de mover no sentido de fazer um filme à altura da obra-prima de Herbert. O próprio percurso de Dune no cinema se assume como quase mitológico e espera-se agora um trabalho que abrace os fãs e que acolha a obra de Lynch e de Herbert num filme grandioso. O que se sabe desde já é que será certamente um dos filmes de 2012 e um certamente a não perder. Como curiosidade pode interessar a um fã ouvir a BSO do jogo Dune, Dune: Spice Opera de 1992 e espreitar : www.duneinfo.com.

Rafael Vieira 2010, não publicado 

Filmes e séries comentadas :

David Lynch | Dune (1984)
Alan Smithee (AKA David Lynch) | Dune (1989)
John Harrison | Frank Herbert's Dune (2000) – TV
Greg Yaitanes | Children of Dune (2003) – TV
Pierre Morel | Dune (2012 ?)
Alex Proyas | Dark City (1998)
Jeunet / Caro | La Cité des Enfants Perdus (1995)
Ridley Scott | Blade Runner (1982) + Alien (1979)
Alejandro Jodorowsky | El Topo (1970) + Holy Mountain (1973)
Roger Donaldson | Species (1995)

THE COMPANY MEN

















Homens de Negócios de John Wells (The Company Men de 2010) é um filme optimista passado na actualidade em Boston, que faz paralelo com a crise económica presente, como já Capra e um tardio Charlie Chaplin o tinham feito com a Great Depression de 1929 (e outros diversos títulos da época feitos na esteira do Zeitgeist do momento). A aproximação a Capra é mais evidente ainda quando se joga neste filme o destino de diversos indivíduos contra a radical crueza capitalista das corporações, da corporação. É o fundamental binómio indivíduo sacrificado vs. grande corporação inclemente, fórmula Robin Wood vencedora mas também uma espécie de Neo-realismo necessário e natural.


O cinema responde sempre às perguntas do momento e acompanham o mundo real nas suas diversas cristas e depressões de onda. Acompanhamos a decadência social e económica de diversos trabalhadores de topo duma firma naval com diversos estaleiros (a GTX) que os dispensa sem dar carta. É sem falsos moralismos que o filme se concentra no desemprego de colarinho branco e ao fazê-lo revela uma faceta desconhecida da recessão actual. A elite também é atingida. A elite não é estanque. E é a elite que ao cair o faz mais evidentemente, pois a queda ao partir dum ponto mais alto é ainda maior e mais barulhenta. Mostra sobretudo como a crise é viral e se reflecte a todas as classes (entenda-se económicas) da sociedade. Enquanto a crise é o cenário onde vão aparecendo desempregados em sombra-chinesa, a corporação – e o seu chefe, cabecilha que manipula pessoas sem outra intenção que não o lucro próprio e a satisfação dos accionistas – o vilão. Um vilão encartado e cotado em bolsa em que o elo mais frágil e facilmente podado por água vai, serão sempre os empregados. Sejam soldadores ou executivos. Ninguém é indispensável, mas aqui mostra-se que dispensável pode ser qualquer um, mesmo que tenha importância dentro do sistema económico. Fundamental é só mesmo o valor da acção, elemento indivisível que se sobrepõe ao átomo, ao quark e ao trabalhador diligente.

Este é, acima de qualquer outra consideração, um filme responsável. Tem interpretações convincentes, sólidas e é um gesto necessário ao sabor dos tempos. Ultrapassa a mediania e fica a milhas de ser categorizável como filme domingueiro. Além de que tem o detalhe de nos apresentar um Kevin Costner entradote que deixa apenas entrever a recordação do herói carteiro e activista dos nativos americanos. Este é bem possivelmente o melhor papel que lhe vi desde que bailou com canídeos.

Título original : The Company Men
Realizador : John Wells
Actores : Ben Affleck, Tommy Lee Jones e Chris Cooper

Rafael Vieira 2011, publicado na revista TAKE n27 

I'M STILL HERE




















Alguém me comentava em exaspero de momento que o I'm Still Here é um pouco original e (como tal) oco engano, alinhando-o numa linha de enganos onde encontramos também Milli Vanilli e o radiofónico The War of the Worlds de Welles. Mas é ao traçar uma breve história do logro no cinema que lhe dou a volta e vejo como este primeiro filme de Casey Affleck se torna bastante interessante: é um exercício do logro que suplanta o filme em si (o que se vê em District 9 e nos Zelig, This Is Spinal Tap e até Czech Dream) e se prolonga a toda uma montagem exterior a esse – extende-se a uma maquinação da fraude construída para fazer valer melhor o filme e o logro na tela, estratagema bem lançado no The Blair Witch Project de Myrick e Sánchez de 1999 e no mais recente Cloverfield de 2008, produzido por J.J. Abrams. 

O I'm Still Here inscreve-se no género de mockumentary e mostra Affleck gravitando em torno de Joaquin Phoenix, documentando o seu percurso desde que anunciou a sua desistência da carreira de actor em 2008 para enveredar por uma de rapper, intercalando dolorosas actuações ao vivo com a perseguição ao rapper P. Diddy. O filme vai mostrando as suas derrotas com um à vontade de queda encenada e o logro é construído ao longo deste período de tempo com comunicados e ainda uma descerebrada ida ao The Late Show do Letterman, que seria muito celebrada no You Tube, contribuindo para o crescer do mito que foi atapetando a chegada do filme.

Num meio tão crítico quanto céptico que é a audiência actual uma experiência destas acolhe sementeira fácil; colheu descrédito e crença, contribuindo a discussão para fomentar realmente aquilo que se pretendia: ruído, curiosidade, dinâmica de grupo, efeitos virais e contaminações boca-a-boca. O filme é um magnífico stunt publicitário fílmico que sobreveio a questões como: será que o actor quer realmente deixar de o ser? É a manobra necessária para recuperar a carreira descendente de Phoenix? Estava essa carreira realmente acabada? Poder-se-á deixar totalmente Hollywood depois de se lhe alcançar o topo? A experiência desculpabiliza uma fraude? Foi uma experiência ou uma ida ao inferno? 

O filme torna-se circular em eterno retorno de um logro matrioshka e como tal é uma ferramenta poderosa de percepção de muitos mecanismos actuais, como sejam a força dos media e a facilidade de persuasão das massas. Há – claro – diversos sinais dentro do filme e nos créditos finais que dão a chave para a veracidade do filme, assim também como o mais recente regresso de Phoenix ao Late Show e comentários públicos de Letterman. No entanto a dúvida persiste e deixa gosto de bom filme a pairar nos sentidos: é Phoenix renascido realmente e foi o filme alavanca para tal ou foi personagem que representou tão fielmente como um infiltrado?

Rafael Vieira 2011, publicado na revista TAKE n26 

Ficha técnica:

Título original: I'm Still Here
Realizador: Casey Affleck
3 actores: Joaquin Phoenix, Sean "P. Diddy" Combs, Casey Affleck

Votação : 4

Frase : Poder-se-á deixar totalmente Hollywood depois de se lhe alcançar o topo – uma manobra ou uma ida ao inferno? É sobretudo um magnífico filme-experiência.

Link : www.imstillheremovie.com

DEIXA-ME ENTRAR (anglo-americano)




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O filme anglo-americano Let Me In (2010) não poderia ser introduzido sem lhe referir a ascendência sueca, ou seja, a parelha livro/filme escritos por John Ajvide Lindqvist que lhe serviram de base e com título internacional de Let The Right One In (filme por Tomas Alfredson de 2008 que teve estreia comercial em Portugal sob o nome Deixa-me Entrar). Este é um mais do que assumido orgulhoso remake em que a história e as personagens são adaptadas para o público americano e com ele todos nós: qualquer obra de sucesso em cinema que não anglófona será eventualmente adaptada.

corpo da crítica

Let Me In (e o original) não se esgotam em pulsões sanguíneas ou carótidas de horror devidas a um filme de género e não se poderá classificá-lo simplesmente como de filme de vampiros ou como apenas de terror. O nome titulado refere-se à regra de que os vampiros têm que ser convidados para entrar em qualquer habitação, mas o leitor não precisa de um convite explícito para um filme em que os vampiros são apenas mais um dado secundário do que a espinha dorsal.

Há muito mais aqui e o convite para entrar acaba por ser para o de penetrarmos dentro da inocente história de amor (e de afeição e profunda e crescente amizade) entre dois adolescentes, Owen e Abby, ele um rapaz solitário e acossado por bullying na escola e ela, à primeira vista uma rapariga normal, mas que com o crescimento da história se revelará como vampira. As relações pessoais são o mais inocentes possível e o ser vampira é encarado com uma naturalidade desarmante e pouco habitual em filmes de morder o pescoço - a um momento Abby usa os seus poderes sobre-humanos para ajudar Owen e poderá ser que o crescimento encontre aqui uma excelente imagem para a sua evolução, via perda de inocência por via de sangue derramado e uma relação (amorosa/platónica, talvez). Este filme é uma variante à tragédia de Romeu & Julieta, mas onde esta surge de canino afiado.

Lindqvist volta a assinar o argumento mas desta feita a meias com o também realizador Matt Reeves (do magnífico Cloverfield, 2008). Assumido o remake substituíram-se os nomes dos personagens para uns que surjam mais confortáveis ao ouvido anglófono (das duas personagens centrais de Oskar e Eli para Owen e Abby) e foi também deslocada a acção, de Estocolmo para o Novo México. Associado a um maior budget são esperados melhores e maiores sustos ou, ao menos, uns mais esforçados e credíveis momentos a um filme que já se prolonga em franchise, com já uma prequela saída em comic e uma séria hipótese de sequela. Estreia a 21 deste mês para apontar as diferenças.

Rafael Vieira, 2010, publicado na Magazine HD n5, de Outubro de 2010, pág. 34 (suplemento Take)

Ficha técnica ::

título original :: Let Me In
realizador :: Matt Reeves
Actores (3) :: Chloe Moretz, Kodi Smit-Mcphee e Elias Koteas

SHUTTER ISLAND
























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Shutter Island (2010) pode ser resumido e rotulado como um filme não-Scorsese, mas tal opinião será sempre redutora perante a obra – até porque o que não é alheio a todas as áreas de criação é a inovação; que surge naturalmente acompanhada com irregularidades na qualidade e lado a lado com uma aceitação intermitente pela crítica e pelo público. O último filme de Scorsese é um objecto estranho na sua obra, mas não é por isso que se classifica como um mau filme, nem por sombras.

crítica

Compramos o último cd de uma determinada banda que já conhecemos e gostamos porque lhe identificamos um estilo e é pela continuidade desse que não abdicamos de termos o seu último trabalho. Qualquer alteração a esse estilo será sempre acompanhado com alguma estranheza. O mesmo se passa no cinema e se em David Lynch o magnífico Uma História Simples (The Straight Story - 1999) constituiu uma quebra consciente com a linha do realizador, Shutter Island não é nem uma quebra óbvia nem sequer uma consciente afirmação da diferença na sua filmografia. Ang Lee prova filme após filme que se pode abdicar absolutamente dum estilo vincado e continuar a fazer bom cinema, saltitando entre obras magníficas e tão diversas como Comer Beber Homem Mulher (Yin Shi Nan Nu - 1994) ou O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain - 2005).

Mas se a crítica e o público se dividiu na recepção ao filme de Scorsese, apelidando-o (a vezes em tom pejorativo) de bizarro, não é sem lhe conhecer a carreira que se pode afirmá-lo de ânimo leve. Martin Scorcese é dos mais consagrados realizadores vivos, responsável por obras primas do cinema como Taxi Driver (1976), O Touro Enraivecido (Raging Bull - 1980) ou Os Cavaleiros do Asfalto (Mean Streets – 1973) onde se encontra uma marca de autor independente, mas deambulou também por filmes onde tal se perde e onde existe um óbvia concessão ao entretenimento e ao establishment como O Aviador (The Aviator - 2004) e Gangs de Nova Iorque (Gangs of New York – 2002). Ao tentar colar-lhe um estilo não pode deixar de se dizer que a sua obra é, não irregular, mas infinitamente versátil - Casino (1995) está, na forma, a milhões de anos-luz de O Cabo do Medo (Cape Fear - 1991). Dito isto, Shutter Island surge menos como o percalço que se assumiu pela pena de alguma crítica e mais como um outro grande filme de Scorsese.

Em Shutter Island desenvolve Scorsese uma história tensa a partir de um argumento intricado que é filmado como se fosse um jogo de plataformas ou um RPG – existe sempre algo a desvendar numa personagem ou algo camuflado por detrás de uma parede. A atmosfera que o realizador proporciona é claustrofóbica e bem ao género dos livros de Paul Auster, entremeados a espaços com sequências de sonho devedoras a Lynch (importa dizer que os produtores iniciaram este projecto tendo em vista David Fincher como realizador). O mais que se encontra como definitivamente característico de Scorsese é a personagem central de Teddy Daniels, tortuoso e sofredor como o fora também Travis Bickle ou Jake LaMotta – a história centrada num homem honestamente disfuncional e quase anti-herói é recorrente em Scorsese. Esta figura central é intepretada por Leonardo DiCaprio num dos melhores papéis da sua carreira (será talvez o novo actor fetiche de Scorsese após De Niro).

Na sequência inicial é-nos revelado que o U.S. Marshall Teddy Daniels e o seu colega Chuck são destacados para resolver o desaparecimento de uma paciente do hospital psiquiátrico para criminosos de Ashecliffe, na ilha de Shutter ao largo de Boston (espaços e geografia são fictícios, tudo foi colado através de CGI e em pós-produção). A instituição assemelha-se a Arkham do Batman de Bob Kane e a ilha, fortaleza-prisão inexpugnável, recorda a Ilha do Diabo presente em Papillon (Papillon – 1973) ou até Alcatraz. O cenário de pequeno universo isolado de ilha-prisão é o ideal ao proporcionar uma densa teia de intrigas e de segredos, que vão sendo desmontados por Daniels enquanto a investigação se desenvolve.

O ambiente não é simpático e romântico como nos filmes de prisão de Frank Darabont (Os Condenados de Shawshank e À Espera de um Milagre, de 1994 e 1999, respectivamente) e o que Daniels descobre é menos conclusivo sobre a investigação e acaba por ser mais revelador do seu passado conturbado por traumas sobre a morte da mulher, sobre a sua presença na libertação do campo de concentração de Dachau e sobre a motivação verdadeira para a sua presença em Ashecliffe. As memórias do seu passado são imprecisas e sobrepõem-se com o crescer do filme – tal como a memória volátil do Valsa com Bashir de Ari Folman (Waltz with Bashir – 2008).

Acabamos por entrever que a investigação de Daniels mais do que tentar em resolver o caso da doente desaparecida, se direcciona a resolver o puzzle que é o seu passado (e percebemos depois, também o seu presente) – assim os fluxos de realidade ou sonho cruzam-se e complementam-se, convergindo num final que certamente arrebatará qualquer cinéfilo que se preze, clarividente ou não.

A identidade fílmica de Scorsese sai intacta num filme de grande qualidade, que conta com um excelente argumento burilado ao nível dos melhores livros/filmes policiais e com consistentes interpretações – além de Di Caprio destaco também Ben Kingsley num forte papel. O final – e longe de mim colocar aqui spoilers – será revelado na tela em todo o seu esplendor e certamente também nas horas seguintes de reflexão e ressaca do filme, em que todos os pequenos detalhes e aparentemente pouco importantes gestos mostrados desde o seu início, terão toda a devida justificação, fechando a deliciosa charada que é este filme.

Rafael Vieira 2010, publicado na Magazine HD, n1 (suplemento Take)

Nota 4

LISBON ENCOUNTER









Tinha que trazer este à baila até porque tive papel participante nele (assim como no Guia Lonely Planet Portugal). Colaborei muito próximo com a editora no Encounter e através dela ainda tive voz no Portugal. Coadjuvei-a sobretudo nos segmentos dedicados À arte contemporânea e street art e à vida nocturna ecléctica e desconhecida.

Espreitem ambos e talvez se surpreendam descobrindo algo que desconheciam sobre o nosso país.


MATRIZ



















E aí está finalmente a revista Matriz - número 1, a primeira revista generalista totalmente gratuita feita em Portugal. Para já em formato online - surgirá até ao fim desta semana em formato de papel. Conta também com a minha participação, com o artigo arqueológico urbanístico Aprender com Lisboa, nas páginas 45/46. As fotos do artigo são minhas também. 

Folheiem aqui : http://matrizmag.com